A VÍTIMA inocente do Tabagismo

Há já mais de 30 anos, tive a oportunidade de escrever nestas páginas uma primeira abordagem acerca dos efeitos nefastos do tabaco sobre a criança, a sua vítima mais inocente. Confesso que tive então a esperança de que, já cinco anos decorridos deste século XXI, este assunto fosse apenas uma má recordação. Desde há alguns anos que a OMS em geral, e alguns países em particular (como a Noruega), tinham começado a equacionar um ano 2000 sem tabaco. Este já lá vai e tudo continua como antes!
Se, em alguns países, o tabagismo masculino conhece alguma regressão, ele tem sido substituído, cada vez mais e cada vez mais cedo, pelo tabagismo no feminino, com um concomitante aumento das doenças relacionadas com o tabaco nas mulheres e, muito naturalmente, também nas crianças.
A influência tão prejudicial do tabagismo na criança pode começar ainda antes de ela ser concebida. Na realidade, vários estudos epidemiológicos demonstram que nas mulheres fumadoras há uma frequência de esterilidade da ordem dos 21 por cento, em comparação com 14 por cento nas não fumadoras. Uma das causas será o facto da nicotina libertar certas substâncias que vão alterar os movimentos das trompas. Daí, também, a maior frequência das gravidezes tubárias nas fumadoras. Também os espermatozóides do pai podem ser afectados pelo tabaco. O seu esperma será menos rico em espermatozóides e estes terão mais vezes anomalias e menos mobilidade, por acção directa da nicotina.


Mas, uma vez o bebé concebido, os seus problemas não ficam por aí, se os pais, sobretudo a mãe, forem fumadores.
Depois do nascimento, se os pais fumam, sobretudo a mãe, a vida da criança pode ser grandemente afectada, dado que ela se torna numa fumadora passiva.
Se não, vejamos:
Se depois do nascimento a mãe fumadora amamentar o pequenino ser, como a nicotina passa para o leite materno, a sua acção nociva continua a fazer-se sentir sobre o lactente. Neste leite nicotinizado já foi encontrada nicotina na percentagem de 0,5 mg por litro. Numa mãe que tenha fumado pouco tempo antes de amamentar, a frequência cardíaca do bebé pode pas-sar dos normais 120 batimentos por minuto, para 180, com os riscos inerentes sobre um órgão tão sensível.
O risco da chamada Síndroma da Morte Súbita do Lactente é também maior com mães fumadoras e que fumaram durante a gravidez, sendo tanto maior consoante o número de cigarros fumados pela mãe. A isquemia (falta de oxigénio) fetal causada pela vasoconstrição parece ser o mecanismo que potencializa esta dramática situação.
Mas é sobre o seu aparelho respiratório que o tabagismo passivo das crianças deixa as maiores marcas. A tal ponto que surgiu mesmo uma nova patologia que, de forma muito elucidativa, dá pelo nome de “Pais que fumam, crianças que tossem”. A tosse crónica, por vezes levando ao vómito, é o seu sintoma mais frequente (73% dos casos), podendo ser acompanhada de sufocação. Vêm, em seguida, as bronquites de repetição (33%), a asma do lactente (17%), as rinofaringites (13%) e as laringites recidivantes. Notam-se, muitas vezes, sintomas de irritação aguda do aparelho respiratório, sobretudo depois de reuniões familiares (em especial ao fim de semana) em que se juntam vários fumadores: irritação nasal e das conjuntivas oculares, bronquite, traqueíte espasmódica. Estas reuniões são, também, responsáveis pela chamada síndroma da segunda-feira de manhã, bem conhecida dos professores, em que as crianças passam toda a manhã a tossir na escola.
São, também, mais frequentes nos filhos de mães fumadoras as bronquiolites agudas, tão vulgarizadas hoje em dia, em que, apesar dos riscos que lhe são inerentes, as crianças estão melhor no infantário do que em casa com uma mãe fumadora.
Outra situação que pode ser desencadeada pelo tabaco é a otite média aguda e a otite serosa, do lactente e da criança pequena. Globalmente, a taxa de otite serosa é mais elevada em 38% nas crianças submetidas ao tabagismo passivo, sobretudo por parte da mãe. Isso comprova-se pela detecção de taxas elevadas de cotinina (metabolito da nicotina), na urina das crianças afectadas. A exposição passiva destas crianças ao fumo do cigarro actua como irritante do revestimento das vias respiratórias, tendo um efeito adverso sobre os movimentos dos cílios e a consistência do muco que, normalmente, mantêm limpas estas vias.
A agravar a situação, estudos recentes demonstram que as crianças expostas ao fumo do tabaco apresentam níveis mais altos de IgE no sangue (proteína que indicia a existência de alergia), testes cutâneos mais positivos aos pólens e desenvolvem doenças respiratórias em idades mais precoces do que as que não vivem rodeadas de fumo de tabaco.
Infelizmente, nos nossos dias, a um crescente aumento do número de mães fumadoras há que juntar, logicamente, um crescente aumento de crianças que fumam, elas próprias e em idades cada vez mais precoces. Está provado que as alterações ao nível dos brônquios, verificadas nestas crianças, são tanto mais importantes e duradouras, quanto mais precocemente se iniciarem no vício. Tem sido afirmado até que estas alterações, que mais tarde podem levar a problemas graves e potencialmente incapacitantes e até mortais, como o enfisema pulmonar, serão irreversíveis, mesmo que o jovem venha depois a deixar de fumar. Basta, para isso, que fume 5 ou mais cigarros por dia.
Igualmente, a criança ou o adolescente que fuma vê o seu rendimento escolar diminuído, sendo o uso do tabaco factor importante de insucesso escolar. Igualmente, o tabagismo juvenil produz deficiências vitamínicas, perturbações da nutrição e desajustamentos mentais e sociais. Pode ser também a plataforma de lançamento de outras toxicodependências, ainda mais
graves, como a marijuana e mesmo as drogas duras.
Muito mais haveria a dizer se mais espaço houvesse. Apenas mais uma referência à acção do tabaco no aparelho digestivo do jovem, com diminuição das secreções do pâncreas e aumento da alcalinidade do duodeno, factores que contribuem para as frequentes úlceras duodenais da adolescência.
Por último, não queremos deixar de falar nos perigos do cigarro como causador de incêndios de que, tantas vezes, as crianças são as principais vítimas. Estima-se que o cigarro seja o causador de 45% de todos os fogos e de entre 22-56% das mortes por fogos domésticos. A maior parte dos cigarros contêm aditivos, quer no papel quer no tabaco, que lhes permitem arder até durante 28 minutos, quando deixados sozinhos.
A juventude é a idade da imitação e os jovens dos nossos dias vivem e procedem cada vez mais como o grupo em que se integram. É necessário ser quase um herói para recusar o cigarro que os colegas lhe estendem, sobretudo porque o hábito de fumar é por muitos considerado como uma forma de libertação e de afirmação pessoal.
Haverá sempre crianças a fumar enquanto houver adultos que o façam. Que moral têm um pai ou mãe para aconselharem o filho a não fumar quando eles próprios fumam? Mas o tabagismo, quer passivo quer activo, é um grande risco para a criança e para o jovem. Se o melhor da vida é a criança, desafio todos os pais que me lêem a libertarem os seus filhos que um dia hão-de nascer, que estão para nascer ou que já nasceram e estão a crescer, deste terrível flagelo. SL 

Bibliografia

- Nelson: “Textbook of Pediatrics”
- Oski: “Principles and Practice of Pediatrics”
- Cadernos de Imuno-Alergologia Pediátrica
- Maria da Conceição Granate: “ Fumar e ... Adoecer”
– Samuel Ribeiro: Projecto “Tabaco ou Saúde”, “ o Tabaco e o Cancro do Pulmão” (1963) e “Saúde e Lar” (1973, 1979 e 1985).

Samuel Ribeiro
Pediatra

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